sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Qualquer coisa entre fugir, estar presente, chorar e levantar...

Fugi.

Desde aquele dia 31/03/2014, aprendi a fugir. Encontrei um recanto na minha mente onde a minha filha não havia partido, onde vivíamos só eu, o pai e ela. 
Fugi no dia em que ela nasceu, não estava naquela sala de partos. Fugi para o meu mundo perfeito, onde nós éramos felizes, onde eu e o pai estávamos eufóricos pelo nascimento da nossa Maria Leonor. 
Voltei, quando o corpo dela tocou por breves instantes o meu. Aí senti dores físicas. Aí pedi desculpas ao pai por não ter trazido a nossa filha com vida ao mundo. Pedi perdão a mim mesma por ter arruinado a vida da nossa família mais próxima, porque eu havia sido incapaz de cuidar dela como era suposto.

Fui apresentada a um grupo, dois meses depois da partida da Leonor. 
No tal grupo todas tinham passado pelo mesmo que eu, e vi que os sentimentos eram iguais. Senti reconhecimento e aceitação da minha dor por parte delas.

Continuei a fugir. 
Desta vez, para um mundo onde a minha filha havia partido, mas onde eu já havia superado tudo, tinha feito o meu luto e seguido em frente na minha demanda de ser mãe novamente. 
Fugi, até o dia em que nasceu o meu segundo filho...

Estive presente.

Estive presente no parto dele.
Estive presente quando ele chorou e veio directo para o meu seio ser amamentado. 
Estive presente quando o cordão parou de pulsar e o pai o cortou. 
Estive presente quando o levaram de mim para limpa-lo e eu fiquei sozinha naquele corredor.
Estive presente quando mo trouxeram novamente e ele voltou a agarrar no meu seio com toda força que tinha. 
Estive presente quando nos levaram para cima, a mim e ao pacotinho. 


Não chorei. Em nenhum momento chorei. Estava a tentar absorver tudo aquilo que não vivi no parto da minha filha, não tinha tempo para chorar. 


Estive presente quando o pai apareceu com as nossas malas.

Chorei.

Aí, chorei. Não chorei pelo meu filho... 
Chorei pela morte da minha menina. Pelo choro que não ouvi. Pela noite passada sozinha a seguir ao parto. Chorei pelo dia seguinte, quando acordei novamente sozinha, e fui confrontada uma vez mais com a realidade. Chorei pelo momento em que a minha mãe e uma grande amiga apareceram para falar do funeral da minha filha e que a tinham visto na morgue. 
Chorei porque eu não tive coragem para a ver, porque sabia que se o fizesse, teriam que me por a dormir para que a levassem de mim. 
Chorei naquela noite, saí do hospital a sentir-me a pior mãe do mundo, porque deixei lá a minha menina.
Porque o meu colo estava vazio. 
Porque a minha barriga estava vazia. 
Porque o meu coração estava vazio. 
Chorei quando cheguei em casa e o quarto da Nô estava uma barafunda; berço, malas, roupas... Tudo ali, escondido, para que eu não sofresse mais... Como se tal fosse possível. 
Chorei pelo momento em que separei aquela que seria a sua primeira roupa e o primeiro brinquedo que eu e o pai comprámos para ir com ela. 


Chorei porque tinha medo de estar sozinha no hospital com o meu filho, queria o pai connosco.

Continuei a estar presente, quando finalmente fomos para casa. 
Estive presente, quando entrei com o Francisco nos braços e fiz aquilo que não pude fazer com a Leonor... Mostrei-lhe a casa, a aninhei-me à ele na minha cama.
Estive presente, quando as coisas começaram a correr menos bem. Sentia-me cada vez mais afastada de tudo e de todos. Queria que me dessem espaço para chorar, mas não podia... O Francisco dependia de mim. 
Eu só queria estar sozinha um bocado, fingi não dar conta, mas sabia o que estava a acontecer; era o luto que eu não fiz pela Leonor que havia chegado.
Estive presente, quando comecei a ter problemas com a amamentação... Não conseguia. Simplesmente não conseguia.

Estive presente quando me arrependi. 
Me arrependi por não a ter visto, por não ter me despedido, por ter permitido que tivesse sido cremada, e não enterrada ao pé dos bisavós. Compreendi o quanto me faz falta um sítio físico onde pudesse chorar e estar "ao pé" da minha menina. Sabia perfeitamente que ela não estava lá, mas iria saber onde havia repousado o seu corpo e dali ninguém o tirava.

Estive presente quando decidi procurar ajuda. 
A culpa havia tomado conta de mim. Culpava-me pela morte da Leonor. Culpava-me por não a ter protegido, culpava-me por não estar totalmente presente para o Francisco. Culpava-me por naquela altura ele preferir ao pai do que a mim.

Estive presente quando voltei a trabalhar. 
Há tanto tempo que estava em casa, já não aguentava. Acordar cedo, conviver com outras pessoas... Sentia falta disso.

Estive presente quando a memória começou a falhar. 
Esquecia do que me diziam, não recordava procedimentos básicos, passava vários minutos a olhar para o ecrã do computador a pensar no que eu deveria fazer. 
Falei com a minha superior e disse que precisava de um tempo. Não estava em mim. Estava presente, mas não estava em mim.

Estive presente no primeiro aniversário do Francisco.
Foi um dia bonito, recebi meus amigos e família para celebrar a vida do meu menino.
Estive presente, quando conheci a família do meu marido que vinha de longe, fiquei verdadeiramente feliz por os conhecer, por conhecer uma prima em especial. Ela é filha da tia Maria Leonor, que também já partiu. A minha Maria Leonor tem esse nome porque é o nome da tia (e madrinha do pai).
Estive presente, quando começaram a reparar num anjo cor de rosa em cima de mesa... A minha filha estava representada por aquele anjo. A maior parte não percebeu. A outra parte percebeu, mas não fez comentários. Uma única pessoa percebeu e não escondeu o contentamento. Essa é uma das razões que me levam a gostar dela.

Fiquei exausta.

Fiquei exausta com o aniversário do Francisco, emocionalmente exausta. Queria dormir. Sempre me apeteceu dormir... Mas não deixavam. Não podia. Tinha o Francisco para tomar conta, o pai tinha que ir trabalhar.

Comecei a cair, desci até o fundo.

Comecei a cair e estive sempre presente, sabia o que estava a acontecer. 
Me deixei levar, não tinha forças, não queria ter forças. 
Quis morrer. Quantas vezes quis morrer para que aquela dor acabasse, estava farta de sofrer. 
Senti-me culpada por não pensar no Francisco. 
Ele também precisava da mãe, mais do que a irmã. 
Mas não havia maneira... Eu estava a cair. E não conseguia párar, não tinha onde me agarrar.

Me afastei.

Me afastei porque a minha mãe pediu. Me afastei porque uma das minhas melhores amigas pediu. Pediram que eu me afastasse, por agora, do grupo que tanto me tinha ajudado, pois eu não tinha forças nem para ajudar a mim, quanto mais a outras mães. 
A minha amiga me fez reconhecer que, neste momento, eu sou uma mãe em pé de igualdade com outras. O meu filho está bem e recomenda-se. É um rapagão super alegre e bem disposto, não tem grandes problemas. Neste momento eu sou a mãe de uma criança normal, que está a passar pelas fases conforme o expectável. Neste momento eu sou mãe de uma criança viva. 
Compreendi com isso que durante estes dois anos e meio, fui mãe somente de uma criança morta. 
Sou mãe dos dois. E segundo precisa mais de mim. O pai precisa que eu esteja bem. A minha mãe precisa que eu esteja bem. 
Aquela minha amiga também precisa que eu esteja bem. 
Então, me afastei. Com alguma dor no coração, porque a dor delas é também minha e isso era justamente o que não poderia acontecer. A minha dor já é demasiado grande para ainda levar a dor delas, pelo menos para já... A minha amiga disse que eu agora só conseguia ajudar uma, mas se estivesse bem, conseguiria ajudar uma mão cheia delas e a ideia me agradou. 
Quando a Leonor morreu, eu senti que algo muito bom e muito grande estava para acontecer. Contradizia toda a situação que vivíamos no momento, mas eu sabia que algo muito bom estava para chegar. Começou com o nascimento do meu filho. E ainda falta mais, muito mais. 
Como é que eu sei?! Da mesma maneira que sabia que ia encontrar o homem da minha vida no verão de 2012. Sabia que aquele verão mudaria o meu destino para sempre... E assim foi.

Decidi tentar levantar.

Não sei como vai correr porque ainda não sei como sair daqui. A minha filha não está neste hiato mais negro da minha mente.

Estou a tentar encontrar o caminho de saída. Dessa vez não choro, não fujo, estou presente.
E é assim que quero continuar.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Hospital de Santa Maria

Hoje tive que ir ao Hospital de Sta Maria.
No ano passado fui lá muito mais vezes, mas só conheci as urgências da obstetrícia e os pisos referentes à maternidade.
Hoje, conheci um bocado mais. A minha consulta era às 10:00, e eu cheguei relativamente cedo, por isso pude admirar a imponência, apesar da necessidade de obras urgente, daquele hospital em todo seu esplendor.
Corredores longos, antigos, se aqueles corredores falassem, quantas histórias alegres e tristes no contrariam?
Uma vez li um livro de um escritor norueguês, onde duas das personagens principais se perdiam numa ilha... Uma ilha que aumentava de tamanho cada vez que eles embrenhavam-se nela.
O Sta Maria é assim.
É um hospital que não tem fim. Para todos os lados em todos os andares, vês pessoas a sair e a entrar, pessoas mais simpáticas, outras nem por isso...
Aquele edifício, aquela obra magnânima de arquitetura para a sua época...
Vai sempre ficar-me na memória.
Foi lá que tive o meu bebé arco-íris.
As enfermeiras, pelo menos a maior parte delas, não sabiam que eu tinha perdido a minha menina 15 meses antes às 40 semanas, foram sempre queridas e meigas... Podia dar-se o caso de haver alguma "comoção" por causa da minha história, mas não. Elas amam aquilo que fazem. Duas enfermeiras em particular, nas duas noites em que lá fiquei tive uma delas ao pé de mim, até que eu parasse de chorar... Porque lembrava-me da minha Leonor, e porque queria o meu marido mais próximos de nós, e porque eu ganhei uma fobia horrível de hospitais.
E a outra esteve, de madrugada, durante quase 3 horas para fazer o meu filho comer... E como tentámos, mas sem resultado, o rapaz queria era dormir.
E se as coincidências existem, estava uma mãe que também teve um rapaz e era minha companheira de quarto... E que havia perdido a sua Maria in útero. Fomos o apoio uma da outra.
Gosto daquele hospital. É esquisito uma pessoa falar que gosta de um hospital, mas eu gosto.
Apesar do medo que me assaltava, fomos muito bem tratados.
Merecia obras, volto a dizer... Para que os profissionais fantásticos que lá trabalham tivessem condições de exercer a medicina que sabem, e que tanto bom nome dão aquele edifício.

Não dormi nas duas noites em que lá estive. Primeiro, demasiada adrenalina. Depois, medo que o meu menino deixasse de respirar... Acabei por pô-lo na minha cama e fiquei a observar cada traço, a tentar encontrar parecenças... E de noite um hospital também não dorme. Eram apitos. Eram mães aflitas porque os bebés tinham cólica e elas não sabiam o que fazer. Eram as enfermeiras a pedir relatório do bebé "Comeu? Durante quanto tempo? Fez xixi? Evacuou?"
E assim estava eu perdida no meio de um hospital gigantesco, a sentir-me pequenina e a sentir o meu menino ainda mais pequenino.
É um hospital que mais parece uma casa enorme, que está sempre disposto a receber as pessoas da melhor maneira que ele sabe...

Gosto muito daquele hospital ❤️

T. 

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

883 dias...

Ontem fizeram 29 meses, ou 2 anos e 5 meses, 883 dias que a minha Leonor nasceu adormecida... Realmente, o tempo nos surpreende.  Já passou uns quantos dias desde  que ela nasceu, mas o tempo, para mim... Estes dias doem como se estivesse a passar por tudo outra vez, só que, sozinha.
As pessoas têm um certo problema com a morte ou com o luto.
Não pessoas, não é por dizerem "já passou tanto tempo, tens um menino lindo contigo". Ou essa, quando ouço esta começo logo com comichões: "Deus já te abençoou com outro bebé, se a sua filha estiver a ver vai gostar de lhe ver feliz com o irmão".
A pérolas dessas, sou obrigada a responder: "Bem, efectivamente, sou eternamente grata à Ele por me dar um menino que é a luz dos meus olhos.
No entanto, não possso dizer que não tenha uma certa... Mágoa? Tristeza? Será que culpo-O por ter permitido que a minha menina partisse?
Não sei, mas no dia em que ela faleceu, fomos internados, depois de ouvir o meu marido a chorar a contar a família mais próxima, depois de ter dado a notícia à minha mãe, que atende com a voz mais feliz do mundo porque, finalmente, lhe tinha nascido a primeira neta, e eu a dizer: "Mãe ouve-me... Maria Leonor morreu dentro da minha barriga." E ouço ela e o marido a caírem num desespero de outro mundo...
A minha sogra também nos foi ver neste dia, deixaram-na entrar, e aquele abraço... Não foi dado de sogra para nora. Era de mãe para mãe. Mãe para uma filha.
No final do dia nasceste e levaram-te logo, porque eu não te quis ver (perdoa-me meu amor, eu devia ter-te visto, sonhava contigo e depois partes e eu não capaz de dar-te um beijinho, para levares contigo, desculpa meu amor, era o que eu conseguia fazer naquela altura... Perdão Princesa Mamã).
Por tanto, pessoas, sem dúvida nenhuma que eu mudei. Perder um filho é ao contrário de tudo. É a vida apanhar-te na maior rasteira. É morrer e voltar a ressucitar sem um pedaço... Perder um filho... Não desejo nem ao meu pior inimigo.
Não vale a pena dizer "que já passou", "que vou ter outro", "que Deus sabe o que faz".
Se não souberem o que dizer, digam só "estou aqui". Isto chega e um conforto enorme.
Mas também de nós... Somos as mesmas, só com menos um braço, por exemplo.
Sim porque perder um filho é como perder um membro do corpo... Habituaste a viver sem ele, mas só nós sabemos a falta que nos faz.

Beijinho da mamã Princesa,
daqui até ao céu!...