terça-feira, 1 de novembro de 2016

E porque agora já se fala disso de uma maneira aberta...

Quando o Francisco nasceu eu entrei em depressão. Não sei se foi pós parto, uma vez que, nessa altura, segundo o meu psiquiatra, apenas se manifestou a depressão. Na opinião dele eu já era deprimida antes mesmo de perder a Leonor.
Toda a gravidez da Leonor foi muito ocupada... Tínhamos que encontrar casa, a minha mãe havia sofrido um acidente, tinha que lidar com as sacanas das hormonas... Tudo passou muito rápido. E no final, ela partiu. Ela era o centro do meu mundo, eu preparei-me para ela, e de repente, tenho o meu colo vazio.
Descobri que eu já não existia sem a minha filha. Toda eu estava programada para ser mãe e, explicar para o nosso corpo, que passou por um processo de preparação durante nove meses para o papel que o aguardava, que afinal não temos um bebé é muito, muito complicado.
Mas naquela altura eu queria saber o que a tinha levado. Eu queria voltar a engravidar, o mais rápido possível, mas precisava saber o que tinha levado a minha menina, para saber contra o que lutar numa próxima gravidez.
Em Outubro do mesmo ano, engravidei. Essa gravidez não foi tão pacífica como a gravidez da Leonor, tive duas perdas de sangue, uma às 6 e outra às 9 semanas, acabando por descobrir que tinha um descolamento da placenta. Passei os 9 meses em casa. Completamente obcecada com a saúde do meu filho, tomei injeções diárias, medicamentos para tudo e mais alguma coisa. Eu garantia que o Francisco mexia-se pelo menos uma vez a cada uma hora, e se não houvesse vitalidade naquele movimento, eu chateava a pobre criança até que ele se mexesse como eu queria.
Resguardei-me muito, fugi literalmente das pessoas... Não queria que ninguém soubesse pois isso implicava que, se corresse novamente mal, eu teria que explicar o que aconteceu. De uma certa forma, eu me sentia diminuída enquanto mulher, como se não fosse capaz de cumprir o meu papel.
O parto foi induzido e às 37 semanas e 4 dias tive o meu pedacinho de arco-íris.
As duas primeiras noites foram para fugir. Eu chorava como não chorei quando a Leonor partiu. As enfermeiras foram todas extremamente simpáticas e deixaram o meu marido ficar comigo até bem depois de acabar a visita, mas quando ele ia embora, era um desespero para mim. O Francisco até era um bebé bastante simpático, só queria dormir, era um castigo para lhe fazer comer.
Quando vim para casa, julguei que tudo fosse melhorar... Errado. Em nenhum livro dizia que a mãe a seguir ao parto pode ficar num estado de quase loucura, porque nada ajuda... As hormonas, o cansaço, o não saber se estou a agir bem, a "pressão" que é olhar para eles e pensar:
"Bolas, este bebé é meu. Não o posso devolver, nem entregar para a mãe quando chorar... Dessa vez a mãe sou eu."
Nunca descuidei do meu filho. Sempre tive gosto em que ele estivesse bem tratado, mas esquecia de mim. Andei quase 4 meses sem dormir. Aos dois meses e meio o Francisco já dormia uma noite completa, mas eu continuava sem conseguir descansar. Ao mínimo suspiro dele eu estava acordada, tinha pavor que lhe acontecesse algo, a vida daquele filho não era negociável... Cheguei mesmo a dizer para Deus que, se me tirasse também esse, podia me levar junto, porque eu não estaria a fazer mais nada nesse mundo.
Para além da "pressão" de ser mãe, havia a morte da Leonor... Eu só abaixei as minhas armas 15 meses depois dela ter partido, só me permiti sofrer depois de já ter cumprido com o meu papel, trazer um filho vivo ao mundo.
A amamentação foi a primeira coisa a ser afetada. Para além do Francisco ser preguiçoso, eu tinha os meus complexos por ter a mama grande e não conseguia achar prazer na amamentação. Eu queria que de alguma forma ele não fosse completamente dependente de mim, eu precisava respirar sem ter que pensar no bem estar dele... Às vezes a dor da saudade da Leonor era tão grande que eu ponderava seriamente ir embora de casa e deixar o meu filho com o pai, sentia-me incapaz.
Depois de quatro meses sem dormir cheguei a um ponto de ruptura. Eu era apenas uma sombra minha, fazia tudo de maneira automática. A noite quando o meu marido e o Francisco dormiam, eu chorava. Chorava pela filha que tinha perdido e de quem eu tinha saudades excruciantes, mas acima de tudo, chorava pela mãe que o meu filho havia perdido, pela mulher que o meu marido havia perdido, pela filha que a minha mãe havia perdido... Decidi procurar ajuda.
A psicóloga era fantástica, mas a psiquiatra, nem por isso. Apesar de eu dizer sei lá quantas vezes que eu tinha que estar desperta para tomar conta do meu filho, ela deu-me medicamentos que me deixavam fora do ar... Entretanto, voltei a trabalhar e tive que procurar outro psiquiatra... E aí finalmente acertei.
As coisas estavam a melhorar, mas em Maio desse ano tive uma espécie de esgotamento. A minha memória estava e está afectada... Já esteve bem pior, mas ainda assim esqueço-me de imensas coisas e não tem sido de todo fácil, o meu marido e a minha mãe que o digam.
Entretanto, se há algo de bom nisso, é o facto de, finalmente o meu filho ter a mãe para ele. Desisti de ser mãe só da minha filha morta, hoje consigo ser mãe dos dois. Mais nada de mal toca na minha Leonor, mas o Francisco está cá e precisa de mim. Aliás, acho que vai precisar para sempre... Eu ainda preciso da minha mãe, com ele não irá ser diferente.
Eu tinha/ tenho muita coisa no meu passado, e o nascimento do meu filho foi só a gota que faltava para tudo vir ao de cima.
A depressão, seja ela pós parto ou não, nunca se trata de falta de amor pelos outros... Trata-se de falta de amor por si próprio. Ninguém pode nos comprar a paz de espírito... Eu pus nas mãos do meu filho algo que ele nunca poderia fazer por mim, que era "me curar" da partida da Leonor.
A pessoa que está deprimida não é fraca, está cansada de ser forte. A depressão é atraente, não haja dúvidas... É muito mais fácil desistir de tudo do que lutar para que as coisas melhorem... E atenção, nesse momento escrevo contra mim própria. Faz hoje 2 anos e 7 meses que a minha menina nasceu adormecida. Na semana passada comecei a sentir diferenças físicas em mim... As perdas de memória tornaram-se mais frequentes, tive dores no corpo, comecei a ficar ansiosa e depois veio a prostração. No domingo sentia-me fisicamente doente, não queria sair da cama, mas eu tenho um marido que tem sido uma bênção na minha vida. Da maneira dele, lá tirou-me de casa, e a verdade é que não foi assim tão mal ter saído.
É preciso ter força para não nos deixarmos cair novamente, mas nem sempre a encontramos...
Depois de ter passado pelo que passei, conheci um mundo onde toda gente olha torto quando dizes que estás a ser seguida por um psicólogo e por um psiquiatra. Toda gente olha torto quando dizes que estás a ser medicada. Toda gente, depois, também olha torto quando uma pessoa se passa e faz uma asneira grande... Mas as pessoas que olharam torto, alguma vez se preocuparam em párar e ouvir o que aquele indivíduo tinha para dizer, sem julgar? As pessoas não são todas iguais, cada um tem a sua maneira de reagir perante a uma diversidade... Cabe a nós, e porque também temos telhado de vidro, tentar compreender, sem julgar. Às vezes basta isso, ouvir. Não diminuir o problema. Não dizer que devíamos valorizar o que temos, porque, bolas! Estamos assim justamente pelo facto de nos sentirmos culpados por não sabermos ser gratos por aquilo que Deus nos dá, e nos focarmos tanto naquilo que perdemos.
Amo o Francisco quase de forma visceral. Sempre amei, mesmo quando eu achei que não... Só precisava me perdoar. Me encontrar. Só precisava de ajuda, e graças a Deus, tive.

Sem comentários:

Enviar um comentário